Luísa Pécora
Dependentes do público estrangeiro, estúdios buscam co-produções, filmam na Ásia e criam versões diferentes para a mesma históriaÀ primeira vista, não há nada de memorável em “Finalmente 18!”, espécie de “Se Beber, Não Case” para adolescentes que estreia nesta sexta-feira (17) no Brasil. Mas o longa sobre uma noitada de três universitários representa um marco no que diz respeito à crescente influência da China em Hollywood: a necessidade financeira de agradar ao mercado chinês levou à criação de uma segunda versão do filme, com alterações significativas o suficiente para mudar a história.
Na maior parte do mundo, "Finalmente 18!" conta a história de Jeff Chang (Justin Chin), filho de um imigrante chinês que vive nos Estados Unidos e festeja a maioridade ao lado de dois amigos, garotas e bebidas alcoólicas. Na versão exibida na China, Chang vai aos EUA apenas para um intercâmbio, durante o qual aprende sobre os perigos da juventude. Quando volta para casa, torna-se uma pessoa melhor.
Em 'Finalmente 18', versão chinesa conta história diferente da americana
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Co-produção chinesa, 'Homem de Ferro 3' teve versão com estrela local
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Versão chinesa de 'Looper' tem mais tomadas de Xangai do que a mundial
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'Django Livre' teve estreia adiada após cortes iniciais não serem considerados suficientes
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China cortou referências à prostituição e à tortura em '007 - Operação Skyfall'
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Representação de chineses foi considera ofensiva em 'Homens de Preto 3'
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'Amanhecer Violento' foi alterado digitalmente para vilões não serem chineses
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A diferença de "mensagem" não é obra da censura do governo chinês, mas dos próprios realizadores de "Finalmente 18!", que alteraram diálogos e filmaram cenas adicionais após fechar uma parceria com empresas chinesas que pagaram grande parte do orçamento de US$ 13 milhões (R$ 26,4 milhões).
A decisão representa mais um passo em um caminho que parece sem volta em Hollywood: a busca por co-produções chinesas e a inclusão de atores e cenários do país nas histórias, de olho em um público potencial de 1,34 bilhão de espectadores.
Há muitos outros casos em que a entrada de investimento da China impactou o conteúdo que chegou às telas. Por causa da co-produção, as filmagens de "Looper - Assassinos do Futuro" aconteceram em Xangai, e não Paris - e há mais tomadas da cidade na versão chinesa do que na exibida em outros mercados; "Transformers 4" terá locações no país, além de quatro papéis reservados aos vencedores de um reality show local; e "Homem de Ferro 3", parcialmente rodado em Pequim, incluiu na fita chinesa uma participação da estrela Fan Bingbing e propaganda para produtos de uma empresa de tecnologia.
Mercado em alta
Para Hollywood, há muito dinheiro em jogo. No ano passado, a China superou o Japão e tornou-se o segundo maior mercado cinematográfico do mundo, com potencial para passar os EUA até 2020, segundo estudo da Ernst&Young.
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A renda obtida nas bilheterias chinesas cresceu 36% em relação a 2011, chegando a US$ 2,7 bilhões (R$ 5,4 bilhões). No mesmo período, a arrecadação dos EUA subiu apenas 6%, num sinal da dependência cada vez maior de Hollywood em relação ao público internacional, principalmente no que diz respeito a filmes caros.
Estimulada pelo forte crescimento econômico, a China saiu na frente e deve inaugurar 25 mil novas salas nos próximos cinco anos. As co-produções são fundamentais para que os filmes norte-americanos penetrem neste mercado, já que permitem driblar a cota de 34 longas estrangeiros que podem entrar no país a cada ano.
Para o governo chinês, investir em Hollywood significa ampliar o controle sobre sua imagem no exterior, de acordo com Stanley Rosen, professor do Instituto China-EUA da Universidade do Sul da Califórnia.
"Os chineses querem competir em todos os níveis e assuntos. O objetivo do presidente Xi Jinping é que a China tenha tanto 'soft power' quanto os EUA e a Europa", afirmou Rosen em entrevista ao iG, usando o termo que se refere à capacidade de exercer influência política por meios culturais ou ideológicos. "O governo entende a importância de Hollywood em apresentar a imagem de todos os países para o mundo. Eles também querem espalhar sua mensagem."
Censura
Mas firmar parcerias com empresas chinesas também significa atender aos rígidos padrões da Administração Estatal de Rádio, Cinema e Televisão, órgão do governo chinês que controla o conteúdo de entretenimento produzido e exibido no país. Filmes que contenham nudez, sexo, violência, supertições, fantasmas e questões religiosas, além de críticas às políticas do Partido Comunista, estão sujeitos a cortes.
"Na China, os vilões não podem se dar bem. O final precisa ser positivo e mostrar que o sistema funciona", define Rosen.
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Embora downloads e cópias ilegais tenham aumentado nos últimos anos, o rígido controle da imprensa e da internet faz com que muitas vezes o público chinês nem saiba que os filmes possuem versões diferentes ou cortes.
Foram retiradas, por exemplo, referências à prostituição e tortura em "007 - Operação Skyfall", representações de chineses consideradas ofensivas em "Homens de Preto 3" e cenas de violência e nudez em "Django Livre", de Quentin Tarantino, que teve estreia adiada após os primeiros cortes não terem sido considerados suficientes.
Ao mesmo tempo, tornam-se mais comuns as alterações feitas pelos próprios estúdios, como no caso de "Finalmente 18!" e também em "Amanhecer Violento", lançado em 2012, que foi digitalmente alterado após a filmagem para que os vilões fossem norte-coreanos e não chineses.
A medida parece contradizer o discurso político dos Estados Unidos, cujo governo frequentemente critica a China por atentar contra a liberdade de expressão e os direitos humanos. Rosen, porém, não acredita em crise de identidade na indústria cinematográfica.
"No fim, Hollywood só se preocupa com o dinheiro. Alguns cineastas talvez se incomodem (com a interferência), mas estamos falando de blockbusters, não de um 'Cidadão Kane.'"
'Homem de Ferro 3'
Mesmo entre as produções comerciais, há quem minimize a influência chinesa no processo de criação. Embora existam relatos de que burocratas chineses visitaram as filmagens de "Homem de Ferro 3", o roteirista Drew Pearce negou qualquer interferência em seu trabalho.
“Acho que o que estávamos fazendo criativamente foi o que inspirou as oportunidades de negócio, e não o contrário”, disse, em entrevista ao iG. “Tenho certeza de que isso acontece muito em outros grandes filmes, mas não houve nada além de uma escrita criativa e livre no nosso caso. Talvez tenhamos sido protegidos do negócio. E se fomos, fico feliz.”
"Homem de Ferro 3" conquistou o público e obteve a melhor abertura de um longa estrangeiro na China, faturando US$ 65 milhões (R$ 132 milhões) no primeiro fim de semana em cartaz. Por trás do sucesso, porém, há uma preocupação: "So Young", produção local de baixo orçamento, se mostrou um competidor de peso e arrecadou US$ 22 milhões (R$ 44,6 milhões) na estreia.
O duelo expõe uma das possíveis dificuldades de Hollywood a longo prazo: depender da renda de um mercado que tem grande interesse por seus próprios títulos. "Os estúdios estão tentando fazer o mesmo filme funcionar nos dois países. Isso não vai dar certo", aposta Rosen. “O segredo é produzir para o mercado local e fazer mais filmes que os chineses querem ver.”