Raphael Gomide
Moradores de favela levaram 8 anos para limpar terreno. Com ex-alunos de uma das maiores universidades do mundo, vão fazer complexo ecológico para comunidade conviver e aprenderNascido literalmente no Vidigal – com parteira –, Mauro costumava brincar no “sítio”, no alto do morro, na zona sul do Rio, quando era menino. Ali pegava e comia do pé abundantes mangas, goiabas, jacas, em meio à mata. O tempo passou, e o lugar idílico foi invadido, primeiro por casas, depois pelo lixo. A prefeitura indenizou os moradores, mas deixou o entulho das demolições para trás. Aos poucos, vendo o acúmulo, a população passou a abandonar ali também todo tipo de descarte, como entulho, geladeiras velhas, fogões, cadáveres de bichos mortos. Virou um lixão.
“Dava vontade de chorar. Parecia impossível limpar. Falamos com a Comlurb, mas ninguém vinha. Eu me sentia doente de viver em um lugar assim. Mas tinha aquele pensamento: professor não pega em lixo... Um dia, em 2005, falei com Paulinho (líder dos garis comunitários do Vidigal) e, com facão, passamos a entrar no mato e recolher o lixo. Mobilizamos depois os garis comunitários, em vários mutirões”, conta o professor de música Mauro Quintanilha.
“Vi ninhadas de mais de cem ratos”, contou Mauro. Ele, Paulo Almeida, Manoel Silvestre, Tiago Bezerra e Vitor Alves levaram quase oito anos para limpar o terreno no alto da comunidade - hoje pacificada, com UPP - e transformá-lo em um grande jardim de 85 mil metros quadrados, com vista espetacular para o mar do Rio e as praias de Leblon e Ipanema. Reciclaram material, o Jardim Botânico do Rio doou mudas, guardaram pneus de carros e bicicletas que os donos de uma borracharia no alto da mata rolavam morro abaixo. Foi Mauro quem teve a ideia de usar os pneus como escadas no terreno de declive e acidentado. Parte do entulho retirado preenche os pneus, que deixaram as descidas e subidas do Sitiê mais transitáveis.
Oásis verde no Vidigal
Hoje, a enorme área de 8,5 mil metros quadrados deu lugar a um oásis verde, com jardins, horta, escadas de pneu e bancos de pet, o Sitiê. O nome é uma fusão de “sítio”, modo como os moradores chamavam o lugar no passado, com o pássaro rubro-negro visitante frequente do local, o tiê-sangue.
O espaço ganhou um upgrade no último fim de semana, com uma improvável conexão Vidigal-Harvard-asfalto do Rio. Pedro Henrique de Cristo, 30 anos, é um paraibano formado em Políticas Públicas na prestigiosa Universidade Harvard, nos EUA, e mora há um ano do Vidigal, por opção.
Fundador da entidade Cidade Unida – que recebeu prêmio do ONU-Habitat por programas de políticas públicas em favelas do Rio –, ele idealizou o projeto para tornar o Sitiê um parque ecológico e de educação, com arquitetura de alto nível, voltada para o aprendizado e sustentabilidade. Convocou amigos arquitetos de Harvard e viraram três noites na elaboração dos projetos em computador.
Mutirão reúne moradores do morro, escoteiros e visitantes do 'asfalto'
“Aqui será tudo ‘estado-da-arte’, do bom e do melhor. Aos poucos, conseguimos parceiros. Devemos ter doação de todo o material para a obra”, diz Pedro, que estima o custo total em cerca de R$ 200 mil, nada tão vultoso. Ele, porém, não quer participação da administração pública. “Basta que não nos atrapalhem”, afirmou.
No fim de semana passado, a primeira parte foi posta em prática: 120 voluntários do morro e do asfalto – entre os quais ativistas do “Imagina na Copa” e escoteiros – fizeram uma intervenção e completaram dezenas de metros da escadaria de pneus, com “tecnologia do Vidigal”. “Conectamos o morro e o asfalto. Trabalhamos de 7h até meia-noite, na chuva. Tem de misturar a galera com a comunidade, as capacidades complementares”, vibra Pedro, que considera só ter “terminado o mestrado” após morar no morro.
Ex-alunos de Harvard desenharam projeto do futuro Sitiê
O Sitiê já faz parte de roteiros turísticos, principalmente de estrangeiros como a iraniana que esteve lá semana passada. Mas muitos acabavam não conhecendo o espaço pela dificuldade de descer as encostas, sem uma escada.
“Outro dia caiu uma grávida descendo aqui e uma menina torceu o pé”, disse o rapaz.
Caroline Shannon, arquiteta de 26 anos de um estúdio em Boston, recebeu de Pedro uma ligação na quinta-feira para estar três dias depois no Rio, desenhar o esboço e integrar o mutirão. Uma semana depois, avisou no trabalho que ficaria no Rio, por ora.
Ela foi uma das que desenharam, junto com um colega japonês e uma brasileira, o projeto para o futuro Sitiê, que esperam implementar de fato até o fim do ano. Prevê decks de madeira, salas interativas com computadores, lugares de aprendizados para crianças, obras de arte, oficina de “cozinha viva” da chef Graça dos Prazeres, além dos jardins e mirante já existentes.
O quadro-negro
E, principalmente, quadros-negros, que consideram o centro do aprendizado e da criatividade, um grande salto tecnológico do homem, surgido na idade das cavernas. “O quadro-negro é o lugar onde qualquer um pode pintar, escrever o que quiser. Acredito que deva existir um quadro negro em todas as casas do Brasil e do mundo”, afirmou Pedro.
“Esperamos que se torne um estímulo para as crianças, com novas oportunidades tecnológicas e um lugar para dividir o aprendizado. Imagine o que é possível! O que significa o futuro sustentável no urbanismo? Quando se fala isso na faculdade e na teoria, ninguém imagina que um lugar como este exista. E como as pessoas transformaram este espaço, e a comunidade se apropriou dele”, disse a arquiteta americana Caroline Shannon.
É preciso pôr a mão na massa. Paulo Almeida desobstruía na terça-feira com o colega pioneiro do Sitiê Manoel, uma fonte natural de mina de uma pedra perto do Sitiê, hoje sem água – o que desativou a horta. Retiraram até o esqueleto de um gato, o que, junto com outros detritos, contaminava a água pura.
Vestindo camisa de gari comunitário e calças jeans com “Vidigal” escrito a caneta em uma das pernas, Paulo ensina: “Não funciona se não cair de corpo e alma”, disse, enquanto Manoel punha as palavras em prática, dentro de um buraco.